Benquerença
Espero que o Jorge me perdoe mas a minha primeira participação no Penamacor vai ser com um auto-plágio de um texto com quase dez anos já publicado noutros sítios. É uma estorinha sobre uma terra que eu cá sei.
I
(...) Acabaram as aulas. A turma saiu da sala e dispersou-se rapidamente.
Distribui duas ou três «boas festas», mais uns quantos votos de «boa viagem» e ala para os beirais da serra; conforto e descanso é que se desejam, para corpo e alma. Mas este ano a serra é a de todos os dias; este ano, para variar, é Sintra que enfrenta a memória de outras férias passadas num vale à raia de Espanha, num buraquinho da Cova da Beira.
Talvez porque o ambiente e o cenário sejam propícios a nostalgias, talvez porque a saudade seja forte e genuina, despeço-me da Pena, fecho os olhos e recordo.
II
A aldeia
A sudeste, por entre meandros de vales contínuos que, caprichosamente, se sobrepõem e, em determinados pontos, prolongam o horizonte, adivinham-se terras de Espanha.
A noroeste, bem visível, surge a Estrela imponente e desafiadora. Não sei se as montanhas têm perfil mas se tiverem é assim que, daquela aldeia, se vê a Estrela.
Nos outros extremos erguem-se os amparos que completam a identidade do vale - rivalidades de duas montanhas que se aventuraram há milénios numa prova de resistência entre blocos de granito e maciços de xisto. Da distância escavada nasceu um vale largo, plano, fértil, muito raro.
Na noite da véspera de Natal, enquanto se celebra a cerimónia da missa do Galo, a grande maioria dos homens da aldeia fica no adro da Igreja em torno do secular madeiro de troncos de carvalho, pinheiro e castanheiro. Os «rapazes do ano» - os que esperam a incorporação num dos três ramos das forças armadas - descansam, finalmente, do grande andor em que viveram nos últimos dias. Passaram parte do mês acarretando camionetas e mais camionetas de toros e troncos para fazerem o mais alto, mais duradouro e mais brilhante madeiro em todo o vale da Ribeira da Meimoa; uma autêntica estrela a anunciar O menino! Mas que descanso permite a sua idade quando há o vinho novo pronto a provar, quando o contraste da fogueira monumental com o noite gélida entorpece os corpos apelando ao movimento constante tão bem satisfeito numa moda? E que dizer então quando os deveres religiosos estão cumpridos e o adro se completa com as «raparigas do ano»? Confesso que a “malta” de hoje raramente vai em modas e, também nesta aldeia, começa a ser mais cerveja do que tintol, ainda assim, mantém-se como uma das muitas seculares tradições desta noite, a troca, em torno do grande lume, de todos os primeiros olhares que ainda há para trocar. A promessa de amor (outra das tradições sobreviventes) já terá lugar, muito provavelmente, no aconchegante conforto do bafio da uma boate [isto não se escreve assim, pois não?] da aldeia - o bafio é o universal, nada tem de típico ou de pitoresco.
Voltemos às tradições. A que aqui me trouxe foi a de contar e ouvir contar histórias.
Todo o dia é bom dia para contar histórias, mas no Natal os avosinhos e avosinhas, perdão, as avosinhas e os avosinho parecem mais embuidos do espírito, o que, adjuvado pela existência de uma plateia mais estimulante e atenta - os jovens rebentos da família emigrada - torna mais provável esse momento de sempre espantosa beleza.
Me proponho contar-vos uma história, mas tenho de vos esclarecer que é, em última análise, uma composição das várias versões que fui ouvindo, em vários natais, pela boca de cada um dos meus avós . Em memória deles e pela minha memória, cá vai.
III
A querença
Há muitos, muitos anos - à distância a que se fazem as lendas - os homens desta região ficaram em paz e sossegaram os corações. Então, abandonaram os seus castros altaneiros e foram-se fixando um pouco por todo o vale.
No início, seriam apenas três, as famílias que formaram o núcleo original da aldeia cuja história vos conto. Juntos, partilhavam todas as tarefas, alegrias e tristezas fazendo-o com tanto amor e desinteresse, que impressionaram todos quantos passaram por aquele local do vale: o mais verdejante e bem amanhado, bem perto da generosa ribeira que a Malcata já então oferecia.
Era tamanho o bem querer transparecente da relação entre aquelas gentes, que não tardaram em ser conhecidos por todos os ajuntamentos do vale como os benqueridos.
Mas não termina aqui a história deste povo, como em muitos outros fados também o deles reservava provações. Sucessivamente, sofreram com as pragas de gafanhotos vindos de Espanha e sofreram com as pestilências e enxames de insectos oriundos dos muitos pântanos que pontuavam o vale. Só o ferrenho sentimento de entreajuda lhes permitia sobreviver a tais reveses, reconstruindo o sonho tantas vezes derrubado. No entanto, mais uma vez, o destino acrescentaria crueldade e tragédia às provações anteriores. Um dia, enquanto se entretinham com as ceifas, não se aperceberam dos subtis sinais que alertavam para a desgraça. No fim da manhã, surgiu um estranho mas discreto ruído que se avolumou lentamente. Contudo, só já perto do sol posto, associaram a agitação em que andaram os estorninhos, durante boa parte da jornada, a algo incomum, diverso da rapina. Adivinharam a tragédia quando viram o cimo da pequena colina, que os separava de suas casa, cobrir-se de um imenso tapete negro. Este perigo, quase invisível aos sentidos e implacável, tomou-lhes as casas, os animais e os filhos indefesos que por lá ficaram.
O horror e o desgosto não mudou estas gentes... Fê-los mudar de ninho mas não mudou o que os unia. Em resposta à tragédia, também o seu sentimento se acrescentou. Escolheram um local mais seco e de terras menos dadas às formigas; aproximaram-se da serra, ficando a meio caminho entre a floresta e a ribeira e seus pântanos. Mais uma vez sobreviveram e, finalmente, foram mais longe. Criaram raizes naquele lugar e chegaram a ver uma aldeia crescente em gente de geração própria e vinda de terras alheias. Vinham de terras onde se ouviram histórias de um lugar de gentes santas que haviam vencido, com o seu amor e determinação, todos os espinhos que se podem esperar em domínios da lavoura e pastorícia.
Hoje, não merecerá mais o seu nome do que qualquer outro lugar do país. É uma aldeia vulgar, distinta, talvez, pela forma como concentra tantas particularidades do universo da ruralidade portuguesa. Poucas haverá que possam testemunhar tão variados aspectos da história do interior deste país. Poucas haverá que possam continuar a significar na história do interior deste país.
Não sei se és a minha terra, mas quero-te bem Benquerença.
Mem Martins, de 18 a 26 de Dezembro de 1995
(excerto de um texto publicado em 1996 no DN Jovem)
“Can you tell me where my country lies?”
said the unifaun to his true love’s eyes.
“It lies with me!” cried the Queen of Maybe
- for her merchandise, he traded in his prize.
Excerto de «Dancing With The Moonlit Knight», Genesis,
Álbum SELLING ENGLAND BY THE POUND, 1973
I
(...) Acabaram as aulas. A turma saiu da sala e dispersou-se rapidamente.
Distribui duas ou três «boas festas», mais uns quantos votos de «boa viagem» e ala para os beirais da serra; conforto e descanso é que se desejam, para corpo e alma. Mas este ano a serra é a de todos os dias; este ano, para variar, é Sintra que enfrenta a memória de outras férias passadas num vale à raia de Espanha, num buraquinho da Cova da Beira.
Talvez porque o ambiente e o cenário sejam propícios a nostalgias, talvez porque a saudade seja forte e genuina, despeço-me da Pena, fecho os olhos e recordo.
II
A aldeia
A sudeste, por entre meandros de vales contínuos que, caprichosamente, se sobrepõem e, em determinados pontos, prolongam o horizonte, adivinham-se terras de Espanha.
A noroeste, bem visível, surge a Estrela imponente e desafiadora. Não sei se as montanhas têm perfil mas se tiverem é assim que, daquela aldeia, se vê a Estrela.
Nos outros extremos erguem-se os amparos que completam a identidade do vale - rivalidades de duas montanhas que se aventuraram há milénios numa prova de resistência entre blocos de granito e maciços de xisto. Da distância escavada nasceu um vale largo, plano, fértil, muito raro.
Na noite da véspera de Natal, enquanto se celebra a cerimónia da missa do Galo, a grande maioria dos homens da aldeia fica no adro da Igreja em torno do secular madeiro de troncos de carvalho, pinheiro e castanheiro. Os «rapazes do ano» - os que esperam a incorporação num dos três ramos das forças armadas - descansam, finalmente, do grande andor em que viveram nos últimos dias. Passaram parte do mês acarretando camionetas e mais camionetas de toros e troncos para fazerem o mais alto, mais duradouro e mais brilhante madeiro em todo o vale da Ribeira da Meimoa; uma autêntica estrela a anunciar O menino! Mas que descanso permite a sua idade quando há o vinho novo pronto a provar, quando o contraste da fogueira monumental com o noite gélida entorpece os corpos apelando ao movimento constante tão bem satisfeito numa moda? E que dizer então quando os deveres religiosos estão cumpridos e o adro se completa com as «raparigas do ano»? Confesso que a “malta” de hoje raramente vai em modas e, também nesta aldeia, começa a ser mais cerveja do que tintol, ainda assim, mantém-se como uma das muitas seculares tradições desta noite, a troca, em torno do grande lume, de todos os primeiros olhares que ainda há para trocar. A promessa de amor (outra das tradições sobreviventes) já terá lugar, muito provavelmente, no aconchegante conforto do bafio da uma boate [isto não se escreve assim, pois não?] da aldeia - o bafio é o universal, nada tem de típico ou de pitoresco.
Voltemos às tradições. A que aqui me trouxe foi a de contar e ouvir contar histórias.
Todo o dia é bom dia para contar histórias, mas no Natal os avosinhos e avosinhas, perdão, as avosinhas e os avosinho parecem mais embuidos do espírito, o que, adjuvado pela existência de uma plateia mais estimulante e atenta - os jovens rebentos da família emigrada - torna mais provável esse momento de sempre espantosa beleza.
Me proponho contar-vos uma história, mas tenho de vos esclarecer que é, em última análise, uma composição das várias versões que fui ouvindo, em vários natais, pela boca de cada um dos meus avós . Em memória deles e pela minha memória, cá vai.
III
A querença
Há muitos, muitos anos - à distância a que se fazem as lendas - os homens desta região ficaram em paz e sossegaram os corações. Então, abandonaram os seus castros altaneiros e foram-se fixando um pouco por todo o vale.
No início, seriam apenas três, as famílias que formaram o núcleo original da aldeia cuja história vos conto. Juntos, partilhavam todas as tarefas, alegrias e tristezas fazendo-o com tanto amor e desinteresse, que impressionaram todos quantos passaram por aquele local do vale: o mais verdejante e bem amanhado, bem perto da generosa ribeira que a Malcata já então oferecia.
Era tamanho o bem querer transparecente da relação entre aquelas gentes, que não tardaram em ser conhecidos por todos os ajuntamentos do vale como os benqueridos.
Mas não termina aqui a história deste povo, como em muitos outros fados também o deles reservava provações. Sucessivamente, sofreram com as pragas de gafanhotos vindos de Espanha e sofreram com as pestilências e enxames de insectos oriundos dos muitos pântanos que pontuavam o vale. Só o ferrenho sentimento de entreajuda lhes permitia sobreviver a tais reveses, reconstruindo o sonho tantas vezes derrubado. No entanto, mais uma vez, o destino acrescentaria crueldade e tragédia às provações anteriores. Um dia, enquanto se entretinham com as ceifas, não se aperceberam dos subtis sinais que alertavam para a desgraça. No fim da manhã, surgiu um estranho mas discreto ruído que se avolumou lentamente. Contudo, só já perto do sol posto, associaram a agitação em que andaram os estorninhos, durante boa parte da jornada, a algo incomum, diverso da rapina. Adivinharam a tragédia quando viram o cimo da pequena colina, que os separava de suas casa, cobrir-se de um imenso tapete negro. Este perigo, quase invisível aos sentidos e implacável, tomou-lhes as casas, os animais e os filhos indefesos que por lá ficaram.
O horror e o desgosto não mudou estas gentes... Fê-los mudar de ninho mas não mudou o que os unia. Em resposta à tragédia, também o seu sentimento se acrescentou. Escolheram um local mais seco e de terras menos dadas às formigas; aproximaram-se da serra, ficando a meio caminho entre a floresta e a ribeira e seus pântanos. Mais uma vez sobreviveram e, finalmente, foram mais longe. Criaram raizes naquele lugar e chegaram a ver uma aldeia crescente em gente de geração própria e vinda de terras alheias. Vinham de terras onde se ouviram histórias de um lugar de gentes santas que haviam vencido, com o seu amor e determinação, todos os espinhos que se podem esperar em domínios da lavoura e pastorícia.
Hoje, não merecerá mais o seu nome do que qualquer outro lugar do país. É uma aldeia vulgar, distinta, talvez, pela forma como concentra tantas particularidades do universo da ruralidade portuguesa. Poucas haverá que possam testemunhar tão variados aspectos da história do interior deste país. Poucas haverá que possam continuar a significar na história do interior deste país.
Não sei se és a minha terra, mas quero-te bem Benquerença.
Mem Martins, de 18 a 26 de Dezembro de 1995
(excerto de um texto publicado em 1996 no DN Jovem)
2 Comments:
Parabéns pela iniciativa!
Abraço.
Obrigado pela parte que me toca Leonel "Tomar" Vicente :-)
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